quinta-feira, 17 de julho de 2008

A elite da tropa

Aproveitando o embalo do post da amiga Fê Ruça sobre as categorias de base, fomos atrás (na frente e de ladinho *ui*) - pero no mucho - de alguém que já tivesse tido a experiência de ser da base. Buscando um ponto de vista diferente do que temos como espectadores, acabei lembrando de um conhecido que já tinha passado pela experiência e fiz charminho mendigando um texto, que não sou boba nem nada. Assim, sendo, vamos lá:


Sonhos que podemos ter.

Indubitavelmente se você chegar a um grupo de meninos entre cinco e quinze anos e perguntar qual seria a profissão que eles gostariam de ter oito a cada dez meninos diriam sem hesitar: jogador de futebol. A fama, o dinheiro, o glamour que roda em torno do futebol no nosso país é algo que não condiz com a realidade das nossas categorias de base, um mundo quase desconhecido por todos e totalmente esquecido pela mídia. Parece papo de alguém que se frustrou com o futebol, mas, na verdade, isso é impossível. Amo isso mais que tudo na minha vida, e apenas a realidade de quem por quatro anos jogou por um time da colônia lusitana e por seis meses no segundo time do coração de todos paulistas, ambos da capital paulista como quarto zagueiro, posição que aderi depois de passar minha infância inteira tentando jogar de meia armador após a chegada do maior zagueiro que vi na minha vida, Carlos Alberto Gamarra Pavón, ao Corinthians em 1998. Nunca fui um grande craque, daqueles de encher os olhos, era aquele zagueiro de força, que todo time que se preze tem. Aquele que chuta a bola para fora, xinga todo mundo, o famoso “Xerifão”, o que só tem sua falta notada quando entra outro no seu lugar, beque de força (ajudado pelo meu tamanho), liderança como nome do meio, além do fato de ser extremamente esforçado e ter uma garra descomunal. Carreira que não tenho tanto orgulho, como vocês verão abaixo. Prazer, Jamil Amir Tanus.

Quando pequenos, sempre temos aqueles que se destacam na brincadeira no parque no final de semana, o craque do colégio, o melhor da rua, aquele que sempre é escolhido primeiro para qualquer partida entre amigos. Pois é, ali a vida começa a fazer a seleção daqueles que vão poder levar em frente o seu sonho. Esses, considerados melhores, são milhares espalhados pelo Brasil inteiro e se espremem em peneiras de clubes para jogarem de dez a vinte minutos para serem selecionados. E tudo muito rápido, tudo muito duro, afinal, o mundo e assim, e os melhores são os que se destacam mais rapidamente. Goleiro fez duas defesas, está dentro, quem faz um gol vira deus, e assim esses milhares se tornam algumas poucas centenas espalhadas por vários clubes. O exemplo foi o teste ao qual fui aprovado. Quinhentos e trinta meninos de treze e quatorze anos se matando por doze vagas. Isso é mais concorrido do que muitos vestibulares, sem contar que o fator sorte é preponderante, pois em pouco tempo é quase impossível a bola vir um grande número de vezes no seu pé. Assumo que dei sorte. Primeiro cruzamento na área, um gol de cabeça, isso me colocou na lista, o resto foi apenas evitar fazer besteiras. Primeira parte do sonho concluída, você está dentro de um clube de futebol.

Contratos milionários, mulheres, carros importados, tudo mais que você vê na televisão estão próximos? Não. Você nem saiu do lugar ainda. Você assina pelo clube um contrato de formação. Você é quase um estagiário. Pode ser dispensado quando eles quiserem, sem direito nenhum e ganha pouco, na época eu recebia algo em torno de duzentos e cinqüenta reais por mês. Tem que ser titular, que agradar o técnico, tem que treinar todos os dias e não reclamar, que abdicar das suas saídas de sexta porque no sábado de manhã tem jogo. Vida dura, afinal, você ainda é um ninguém. Conseguem te transformar. Você achava que era forte, que seu preparo físico era bom? Esqueça. Corra doze quilômetros em um treino físico, faça musculação como é pedido. Muda seu corpo completamente e as coisas que você enxerga fazem você como pessoa mudar. Românticos do futebol que me perdoem, essa vai doer mais em mim que em vocês, mas os maiores craques dos seus times talvez nunca consigam sair da base e vocês nunca vão saber disso. Futebol te leva para frente, mas existe uma palavra que é mágica no meio. Empresário. Quantas vezes presenciamos moleques que todo mundo sabe que são verdadeiros craques perderem lugar no time titular para outros bons jogadores (seria hipocrisia demais eu falar que são ruins, pelo mero fato de quem está ali, tem pelo menos condição de ser bom jogador), mas que não chegam aos pés deles? Vi isso acontecer milhares de vezes, inclusive comigo mesmo, perder lugar para “garoto de empresário”, e essa história será contada nesse texto ainda. Jogava há dois anos pelo clube lusitano, e tive uma oportunidade de sair do clube para ir para uma equipe alvinegra de Minas. Como na época o clube aqui de SP se encontrava em dificuldades financeiras decidiu me negociar. Era coisa besta para valores de time profissionais, mas valores absurdos para quem joga em base. Oito mil reais e teria meu contrato quebrado aqui em SP e assinaria na semana seguinte com o alvinegro mineiro. Essa negociação nunca se concretizou, sabem o por quê? Eu não tinha empresário e quem geria minha carreira era meu pai. O alvinegro pediu para eu assinar com um empresário que era ligado ao clube e eu me recusei, com isso, transferência cancelada.

Continuei na equipe lusitana aqui de SP, conseguimos varias coisas importantes. Tenho orgulho de ter jogado contra e favor jogadores que hoje são de grandes equipes aqui do Brasil, alguns fora do país e outros que inclusive estarão nas olimpíadas. Fiz parte de uma equipe que ficou quase dois e meio invicta, que eram chamados de “Os Salvadores” pela série de dificuldades que o clube passava. Dessa geração seis chegaram ao profissional. A pergunta, por que tão poucos? Porque somos descartáveis. Titular absoluto por três anos, tive uma inflamação no púbis, contusão grave com quatro meses de recuperação, conhecida como púbisfagia. Normalmente contusões desse nível o clube dificilmente mantém o jogador ainda nos planos. Coloca o mesmo no DM e ele fica até que se encerra o contrato. Meu caso foi diferente. Insistiram comigo, me mantiveram no DM para me recuperar (talvez pela geração que eu vinha ser a esperança do clube melhorar). Porém, tive azar pela primeira vez na minha carreira, e isso para um jogador de futebol é algo imperdoável. Com um médico meia boca de categoria de base, fui liberado em três meses, ou seja, um antes do esperado, por coincidência, ou não, iria conseguir voltar nas semifinais do paulista sub17. Na ingenuidade pensei, dei sorte. O maior azar da minha vida. Voltei doze quilos acima do peso (lembra os treinos que eu disse acima? Seu corpo se acostuma aquilo, dificilmente você consegue manter quando se afasta dos treinos) e com isso recebi uma proposta. Um composto chamado Anfepramona, acelera seu metabolismo e faz você perder peso (utilizado em obesos antes de operações no estomago). Sabe por que o aquele jogador é apresentado numa semana acima do peso e na seguinte está pronto para o jogo? Talvez esse tenha sido um dos atalhos. Em duas semanas fui de 92 kg para 80 kg. Simples, perfeito, estava em condição de jogo. Fiz a partida de retorno na semifinal do paulista contra o alvinegro do litoral, retorno perfeito, um gol e 2x0 para a gente. Me sentia bem demais, segundo jogo 1x0 para nós, passamos a final contra o alvinegro da capital. Primeiro jogo 1x1. Segundo jogo mostrou o resultado de um retorno antecipado. A mesma contusão me tirou de jogo aos quinze minutos do segundo tempo. Saí da partida e acompanhei aos prantos de dor meu time perder de 2x1. Resultado consultando um médico particular, retorno da mesma condução (pubisfagia), pois o tempo de recuperação dela não tinha sido respeitado. Mais quatro meses de molho, com o contrato acabando em dois meses. Logo, me tornei descartável. Meu contrato acabou, eu com dezessete anos, decidi desistir do futebol. Pensei, vou fazer faculdade e iremos em frente na vida.

Mas espera, não tinha uma passagem pelo time do coração de todo mundo que mora em SP? Sim, teve. Fiquei por três meses no clube, graças a um diretor de futebol que me conhecia do meu outro clube e me levou. Mas lembrem o que eu disse, relacionamento e tudo no futebol. Essa equipe na época tinha uma parceria com uma rede de supermercados famosa pelo Brasil inteiro e a preferência era para jogadores que tinham o passe vinculado ao mesmo e não ao clube. Joguei seis partidas sempre saindo de titular, em um amistoso, vencíamos por 4x0, eu fui tentar sair jogando, perdi a bola. Final de jogo 4x1. Nunca mais fui relacionado como titular, por uma falha que teoricamente não afetou nada. Sentar para renovar o contrato? Nunca, desisti de jogar futebol, melhor assistir e torcer antes que meu amor pelo esporte se perdesse. Propostas para voltar a jogar? Tive cinco. Desde time que disputou o campeonato paulista da primeira divisão no ano passado até a terceira divisão de mineira que me ligou a semana passada para me oferecer vaga no clube.

Isso ainda é ferida aberta entre minha família. Quer ver meu pai e meus amigos mais próximos fecharem a cara é perguntar ou comentar algo sobre minha “carreira”. É algo que tira a paciência deles e faz com que se sintam meio constrangidos. Não nego, às vezes eu mesmo me sinto mal com isso, acho que apaguei isso da minha memória e evito de contar e até tenho receio de ser mal interpretado por algumas pessoas. Me esforcei para todos apagarem isso da cabeça, conto para algumas pessoas quando a situação convém ou tenho confiança nela. Consegui fazer minha família esquecer isso, virou assunto proibido entre meus familiares, sendo que todos são viciados em futebol, quase como se nunca tivesse existido. Apaguei minha carreira da memória, apenas mantive as boas recordações disso e as lições que eu consegui aprender nesses quase cinco anos de jogador. Hoje sou aquele torcedor de arquibancada, tenho um programa de futebol no qual comentamos o lado B do futebol, para mim isso é ótimo, faz com que eu me envolva nada com o futebol, que eu grite e xingue e não passe disso. Afinal, minha carreira para mim nunca existiu e se você quiser se manter romântico ao futebol, apague ela da sua cabeça também.

Jamil Amir Tanus tem 21 anos, é corinthiano e parte integrante do FATV, com link ali do lado.

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